
Você vai deixar ela aí, sozinha, moço? A mãe me perguntou, quando sua filhinha de um ano e meio, foi colocada na pedra do IML, uma espécie de balcão de aço com uma pia, onde o médico legista faz a necropsia. A criança havia sido vítima fatal de choque elétrico. O fato aconteceu quando a mãe preparava em sua casa o leite para dar à criança, e havia deixado a criança na sala, e essa, sem noção do perigo, puxou o fio da televisão colocando os dedos no plugue da tomada, levando um tremendo choque, vindo a óbito quando era socorrida ao hospital da cidade. Eram 22:00 horas quando o corpo chegou na Delegacia. Era dia das crianças, 12 de outubro de 2014, um domingo. Respondi àquela mãe que se encontrava em desespero naquele momento, que o corpo da sua criança teria que ficar ali, para ser periciado no dia seguinte, pois não se fazia necropsia a noite. O corpo da criança estava envolto em um lençol branco que lhe cobria todo o pequeno corpo e o rosto. A mãe, num desespero só, pediu que eu pelo menos tirasse o pano do rosto de sua filhinha, pois a sua filhinha poderia despertar, ressuscitar, e o pano poderia sufoca-la quando ela acordasse. Fiquei comovido com aquele pedido, e quase sem falar, com os olhos se enchendo de lágrimas, fui até onde estava a criança e retirei o pano do rosto da mesma. Era uma menina linda, uma pele amorenada, olhinhos repuxados, boca pequena, mas estava com os cabelos negros desgrenhados em virtude do choque e a ponta dos dedos estavam um tanto quanto arroxeados. Convenci àquela mãe desesperada para ir para casa, e voltar pela manhã, horário da perícia, pois precisava fechar o IML. Quando eu ia fechando o IML, aquela mãe não se conteve, pedindo que eu deixasse a porta aberta, pois sua criança tinha medo de ficar sozinha, e que se ela acordasse iria ficar chorando, cair da mesa e se ferir. Para ela, a sua criança ainda estava viva, estava só dormindo. A esse pedido comecei a chorar, não suportando a dor daquela mãe. O desespero, o inconformismo com a morte da sua filhinha estava presente em seu rosto. Mesmo com o coração partido, fechei a porta do IML, desligando as luzes, indo logo após para o meu plantão no Cartório da Delegacia, que ficava em frente ao local reservado para perícia médico legal. Por volta das 03:00 horas, ao sair um pouco de dentro daquele ambiente insalubre da Delegacia, ao olhar para o IML, vi uma luz azul saindo de dentro do local, muito cintilante, pelo vidro da janela. Me aproximei devagar, para ver o que estava acontecendo, e ao encostar o rosto na janela, a criança estava sentadinha na pia, sorrindo, e uma mulher, envolta em luz, dando papinha na boca da criança, com os dedos. Saí em desespero com aquela visão, e fui chamar um colega que estava dormindo no Plantão, e ao contar o ocorrido para ele, o mesmo ficou assustado, e decidimos ir ver realmente o que estava ocorrendo. Quando abrimos a porta do IML, a criança estava no mesmo local, enrolada no pano, sem vida, mas com um sorriso nos lábios, a boca suja de leite, e, ao lado dela, um papeiro de barro, sujo, deixado por aquele anjo, aquela senhora nossa. Quando amanheceu, a mãe da criança chegou e eu contei o que havia ocorrido na madrugada, e ela emocionada me disse que as três horas da manhã, era o horário que a criança acordava para tomar o seu leite. Fiquei muito impressionado com aquela revelação. A família levou a criança para enterrá-la e passou-se um ano e sete meses. Encontrei novamente por acaso, aquela mãe que havia perdido a filha, e ela estava sorridente, já com outra criança nos braços, muito feliz. Quando ela me mostrou a criança, dizendo que havia engravidado um mês depois da perda, quase caio de costas, a criança que estava nos braços daquela mãe, era a cópia fiel daquela que havia morrido eletrocutada, até as manchas das pontas dos dedos causadas pelo choque ela possuía. Saí dali, muito feliz, pois presenciei um milagre, e foi até a Igreja agradecer a Nossa Senhora por aquela bênção. Daquele dia em diante, comecei a frequentar a Igreja Santa Rita de Cassia em meu bairro e a participar do terço dos homens. E é isso. Estou muito feliz, pois Deus também é mãe.